De férias com baleias, mulheres, e livros
Fui mergulhar e formei alianças: desgrudados do todo, estamos à deriva
Sendo corpo da Terra
Na parte II das férias eu fui em uma expedição para ver baleias e mergulhar em Abrolhos, que é um arquipélago na costa da Bahia onde foi criado um Parque Nacional Marinho que tem uma biodiversidade maravilhosa e é onde as Jubarte vão acasalar, ter bebês, e ensinar os filhotes a nadar, pular etc. Eu tenho bastante amor pelas baleias, de um jeito que transcende o básico gostar de animais. Não sei explicar, mas eu já muito chorei lendo sobre a caça desses mamíferos marinhos, que no Brasil aconteceu até os anos 80. Foi muita baleia morta. Os caçadores arpoavam os filhotes para capturar a mãe, como pode tal crueldade. As baleias foram quase extintas nos mares brasileiros, mas desde a proibição da caça a população voltou a crescer e hoje tem bastante baleia passeando na costa brasileira no período em que elas sobem da Antártida para águas mais quentes pra dar o rolê anual delas. Quem bom pra nós. Lá em Santa Catarina as Franca chegam bem perto dos surfistas. Aqui na Bahia as Jubarte entram na Baía de Todos os Santos; esses dias tinha umas dando show no Porto da Barra, bem pertinho, e também vi um vídeo de amigas remadoras que encontraram com elas perto do porto (o dos navios).
Eu li um livro que conta a histórias das mulheres que foram de Açores para Santa Catarina, que eram da religião da Grande Mãe (a trilogia Brumas da Ilha, de Bianca Furtado). Mulheres que o catolicismo chamava de "bruxas" e escaparam da inquisição em Portugal. Tem um trecho que fala que
o cachorro é o companheiro das Baleias, uma espécie de comunicador do que acontece aqui na terra. Eles vieram do mesmo sistema estelar. Assim, ele observa como os humanos se comportam, e depois conta para a amiga Baleia, para que ela possa registrar na sua enorme biblioteca: o seu cérebro.
Mulheres, cachorros, gatos, baleias; bichos e plantas: tamo tudo junta e misturada, ocupadas sendo corpo da Terra.
O infeliz o modelo de progresso daninho e destrutivo que acaba com tudo para botar dinheiro nos bolsos de poucos
Em Caravelas, a pequena cidade que é a base dos barcos que saem para Abrolhos, tem um centro de visitantes do ICMBio. Lá, um simpático e competente voluntário apresenta o trajeto e os hábitos das baleias e conta sobre a reserva extrativista de Cassurubá — que, segundo o Futuri Brasil, fica em uma das áreas mais antigas habitadas do Brasil.
A RESEX de Cassurubá apresenta uma variedade de ecossistemas, incluindo manguezais e áreas de mar aberto, que são essenciais para o equilíbrio ecológico do banco dos Abrolhos. A fauna e a flora da reserva são diversificadas, abrigando várias espécies de aves, uma grande diversidade de árvores nativas e muitos peixes […] As atividades econômicas da reserva são executadas pelas comunidades locais, cuja subsistência se baseia na pesca, no artesanato e na agricultura familiar, além de preservarem práticas culturais tradicionais.
E foi essa comunidade que protagonizou a luta contra uma empresa que queria implantar uma fazenda de criação de camarão que ia simplesmente acabar com o ecossistema local. A descrição da treta explicita a parcialidade do poder político em favor da iniciativa privada e contra populações tradicionais e vidas não-humanas, que envolveu até mandato de segurança impetrado pelo então governador da Bahia contra o presidente do Ibama. Em 2009 a RESEX de Cassurubá foi oficialmente estabelecida, em um raro caso de vitória de comunidades tradicionais e da vida em geral contra o modelo de progresso daninho e destrutivo que acaba com tudo para botar dinheiro nos bolsos de poucos.
Pra mim fica a forte certeza de que a proteção de entes não-humanos (plantas, bichos, florestas, corais, oceanos, ecossistemas) anda de mãos dadas com a proteção social a humanos em vulnerabilidade. São todas minorias em relação ao Capital e seus agentes (políticos e empresários).
O que nos leva à interdependência entre todos os seres
Vista da escala do planeta, aquela região era uma ruga; da escala dos exploradores que passavam por ela, era uma sucessão de declives, penhascos, elevações. Da escala do planeta, os próprios exploradores não eram mais do que micróbios, talvez só um pouco maiores do que bactérias ou pequenas águas-vivas, mas não passavam despercebidos com egos tão grandes — o meu planeta, achavam, mas nunca a percepção de que eram o planeta, porque o ego sempre fazia o ter vir antes do ser, fazia os indivíduos se desgrudarem do todo e acreditarem tão firmemente que eram algo à parte, que flutuavam sozinhos no espaço, tão pequenos, devorados pela imensidão do abismo. De um lado, eles, do outro, o abismo e as coisas que moravam ali — mas onde começava esse limite? Onde estava traçada tal divisão?
Eu fui para Abrolhos lendo o livro de Aline Valek, As águas-vivas não sabem de si. E qual não foi minha surpresa quando este livro terminou, e comecei a ler o próximo, e abri a primeira página e também falava de águas-vivas?
Levada pela corrente, lançada pelas ondas, impelida pelo oceano com toda a força, a água-viva está à deriva nas profundezas marinhas — diz Ursula K. Le Guin em A curva do sonho.
Desgrudados do todo, estamos à deriva.
Amor — e mulheres
A expedição tinha desde mergulhadores avançados e experientes (teve gente que contabiliza centenas de mergulhos de scuba, aquele que o cara desce muitos metros com um cilindro de oxigênio nas costas) até mergulhadoras de superfície, que respiram com um snorkel. Foi uma mistura meio complicada, pois os mergulhos eram em lugares diferentes e volta e meia um grupo tinha que ficar no barco esperando o outro (eu era do grupo intermediário, o das mergulhadoras com certificação básica. Posso descer de scuba até 18 metros e fazia também os mergulhos de snorkel pois não sou boba nem nada). Parafraseando um surfista, "o melhor mergulhador é aquele que mais se diverte". O grupo do snorkel se divertiu à beça. Era formado por mulheres que se conheceram ali. 99% dos participantes da expedição são mulheres, conta Mari, a sereia maravilhosa que organiza as viagens. Mulheres viajando sozinhas; a gente se inscreve sem saber o que ou quem vai encontrar, e olha, tivemos a maior sorte. Foi uma surpresa pra mim o tanto que a mulherada era legal e se deu bem. Teria sido bem ruim se assim não fosse, pois passamos cinco dias dormindo, comendo, mergulhando juntas. E conversando. Sobre livros, filmes, histórias, vidas, pessoas. Numa dessas conversas falamos sobre parceiros que têm gostos muito diferentes e não acompanham em viagens como a que estávamos fazendo. Eu contei do meu ex-namorado que não foi comigo em nenhuma das três vezes que fui mergulhar em Fernando de Noronha. Ele não é uma pessoa muito da praia. Parece um absurdo, como o cara namora uma surfista/mergulhadora e não gosta do mar? Na época eu não estava surfando. Fiquei mais de vinte anos sem ser surfista. Teve um período em que eu era infeliz em São Paulo. Eu queria mar. Eu sentia saudade da praia. Meu então namorado que não gosta de praia fez o quê? Me deu de presente de aniversário uma prancha. Se isso te faz feliz, ele disse, vai e faz.
Amor não é grudar no outro, gostar das mesmas coisas, fazer tudo junto. Amor mesmo é fortalecer o outro, apoiar os projetos da pessoa — mesmo que a levem pra Noronha (e assim pra longe de ti).
É preciso afrouxar os nós sem desatar os laços, dizia um quadro na sala de espera da minha psicanalista, quando ainda era presencial. A ideia de estar separado do todo é uma ilusão. Nós estamos enlaçados uns aos outros, se somos o corpo da Terra. Não estou à deriva quando firmo alianças e formo laços, ainda que temporários, com tartarugas, cachorros, gatos, árvores, baleias, águas-vivas, budiões — e mulheres que foram sozinhas para o desconhecido e acabaram se emparceirando no mar.
Uma mente consciente deve ser parte do todo, intencional e cuidadosamente… como a rocha faz parte do todo sem se dar conta.
Ursula K. Le Guin em A curva do Sonho
livros das férias
Um dos meus principais planos de férias era ler muito. E, oh, man, como eu li — entre surf, deslocamentos e mergulhos (inclusive na semana em que estive no barco eu li deitada nos grandes colchonetes do convés superior; era só levantar os olhos do livro para enchê-los de mar :)
O que eu li:
Barbarian Days: A Surfing Life, William Finnegan - maravilhosa autobiografia de uma espécie rara, um surfista inteligente — e que escreve muito bem (publica na New Yorker e ganhou o Pulitzer com este livro). Ele desbravou o mundo inteiro surfando, foi um dos primeiros a surfar em ondas que hoje são famosas (e crowdeadas)
Onde cantam os pássaros, Evie Wyld - história estranha de gente esquisita, cheia de fogo e violência, não é uma leitura leve de férias, preferia não ter lido
Luzes de emergência se acenderão automaticamente, Luisa Geisler - achei muito fofo, uma história de jovens coming of age; e jovens gaúcho legais e engraçados. Adorei o protagonista
Águas-vivas não sabem de si, Aline Valek - foi bem interessante ler sobre mergulhadores enquanto eu estava mergulhando, ainda que tenha sido assustador em certos momentos (e que o tipo de mergulho do livro seja completamente diferente)
A curva do sonho , Ursula K. Le Guin - eu tenho uma sobrinha de uns 20 anos pra quem apresentei O Mochileiro das Galáxias e Ursula Le Guin. Antes de viajar perguntei o que ela estava lendo e era esse livro. Fui procurar e já tinha no meu Kindle. É sobre um cara que tem sonhos que mudam a vida acordada. Mas eu não tinha sequer vaga memória de já ter lido, não lembrava de absolutamente NADA do livro; só me convenci de que de fato já tinha lido quando achei uns trechos sublinhados. Mas é um livro ótimo (isso de eu esquecer acontece até com livros ótimos; de acordo com minha mãe, são as sequelas da maconhice, rsrs).
Tropic of Orange, Karen Tei Yamashita - não sei como cheguei até esse livro, ele é esquisito e não é muito fácil, mas é maravilhoso; uma história bem loka numa Los Angeles não situada no tempo; pode ser um pouco antes de agora ou um pouco depois; personagens chicanos, japoneses-americanos, homeless; tráfico de partes do corpo, laranjas envenenadas, grandes incêndios nas highways, nada estranho para LA; me deu vontade de comer comida mexicana, tentei, fui num restaurante mexicano aqui em Salvador e QUE DESASTRE; será que algum dia terei dinheiro para ir pra LA novamente, será que vai dar tempo ou a emergência climática vai acabar com a cidade e/ou com viagens internacionais de avião antes que eu consiga juntar dolares suficientes pra ir ver LA de novo?
planos para o pós-férias
Continuar lendo muito e surfando muito. Pois no apagar das luzes das férias eu fui demitida. Mais detalhes na próxima newsletter (talvez).
Que coincidência ler seu texto hoje. Esta semana, uma amiga brasileira me contou e me mostrou vídeos do quão emocionante foi avistar uma baleia aqui na Colômbia. Só olhando os vídeos já fiquei emocionada. Imagino você (e ela!) ao vivo, então!
Adorei sua lista de leituras das férias. Surf, leituras e praia: nada mau pra um descanso. Já até adquiri o da Ursula Le Guin, porque o resumo me interessou <3
E puxa vida, espero que você esteja bem, dentro do possível, com a notícia do final da news.
Alessandra, a Rosa Montero em 'O perigo de estar lúcida' tem uma passagem muito bonita sobre a primeira vez que avistou uma baleia de perto! Fiquei muito impactada e imagino que seja uma experiência incrível!
No mais, achei muito fofo ganhar a prancha de presente! ✨