Tava passeando com Heitor e encontrei meu vizinho, o professor americano que morou na Colômbia, indo nadar no mar (nadar mesmo, de óculos e pé de pato, muitos quilômetros, tendo o oceano como raia). Volta e meia o professor e eu nos esbarramos na rua ou na praia ou no café. Moramos muito perto e aqui é um cantinho pequeno, como se fosse um sub-bairro. Aos poucos eu vou reconhecendo os vizinhos, os cachorros, os trabalhadores; nos encontros acontecem sorrisos, desejos de bom dia, boa tarde, boa noite (aqui eles dizem apenas “boa!”). Eu gosto desse convívio urbano que lá na Guarda eu não tinha — porque não era urbano, porque praticamente não tinha pessoas, porque as pessoas que tinha já eram minhas amigas ou então eram desconhecidos que não faziam questão de se tornarem conhecidos e dificilmente retribuíam meus bons dias.
Eu conheci o professor num aplicativo de paquera. Quando vi o perfil dele, achei que o rosto não era estranho, mas só na primeira vez que a gente se encontrou pessoalmente me dei conta: já havíamos nos visto no café que a gente frequenta, que é quase na frente das nossas casas (nesse primeiro encontro a gente descobriu que é muito vizinho, tem apenas um prédio entre o meu e o dele). Era uma pessoa que tinha livros em cima da mesa, e eu, sempre querendo saber o que as pessoas estão lendo, estendi meus olhos e vi um livro grosso, de historia; fiquei com vontade de assuntar mas não quis incomodar.
A gente não tem controle nenhum sobre o que vai sentir pelo outro. Não dá pra escolher, optar por gostar ou não gostar; o desejo obedece apenas sua lógica própria, que é incompreensível para o humano que o sente. Nosso primeiro encontro foi ótimo, tomamos um café e aí era meio dia e fomos almoçar num restaurante mexicano que também é ao lado das nossas casas; foi massa, conversa boa, muito divertido. Mas acho que desde o primeiro momento ficou estabelecido para ambos qual seria a natureza daquela relação, e não era romântica. Agora a gente fica se encontrando pelo bairro. Já nos encontrávamos antes (vide o café), mas agora a gente se conhece, não somos mais estranhos. É muito legal quando a gente se esbarra na rua, ou na praia, ou no café; dá alegria ver o outro, a gente sorri, conta um pouco de como tá o dia, se abraça — e segue, ele lendo ou indo nadar, eu numa reunião no computador ou indo torrar no sol. É bom sentir familiaridade com vizinhos. Tem centenas de pessoas vivendo ao meu lado—todas estranhas, mas algumas delas eu conheço, e essas deixam de ser estranhas. Por causa dessas, eu não tô sozinha no mundo. A gente humano é tão parecido, afinal. Nas dores e desejos. Ali no prédio ao lado tem alguém que eu conheço. Que, como eu, acorda de madrugada. Que, como eu, se angustia com o destino do mundo. Que, como eu, tá cansado de andar por aí e tá buscando um lugar pra chamar de casa.
Tanto eu quanto ele: desplazados. Essa palavra que desde que conheci — veja só: na Colômbia — me intriga. Certas palavras a gente não aprende apenas, a gente conhece, assim como se conhece uma pessoa. Para conhecer desplazados tem que entender a história de gente que foi expulsa de suas comunidades pela violência. Eu e o professor nos auto-expulsamos. Desde muito cedo. O que foi, dentro de mim, que me expulsou — e continua expulsando — de tudo que me é familiar?
Eu, que morei 15 anos em São Paulo sempre como se fosse embora no dia seguinte. Eu, que já chego num lugar pensando em me mudar.
Aqui tem também o garoto tatuador colombiano, uma gracinha. Ouvi uma conversa dele com o instrutor na academia e por isso sei que é colombiano (eu sempre espiando os outros, rs). Depois a gente se encontrou tomando banho de mar e começamos a conversar. Nesse dia o professor tava na praia também, fazendo yoga. Aí eu promovi o encontro dos dois vizinhos que têm em comum outro país, o país que me apresentou a palavra desplazado. Eu, tatuador, professor: três desplazados que acabaram se trombando numa ponta de terra cercada pela Baía de Todos os Santos. Num sub-bairro onde todas as ruas desaguam no mar. Como, volta e meia, nós.
Um lugar talvez meio improvável para o crescimento de raizes. Porém ando sentindo uma coceira nos meus pés. E desta vez não é do tipo que me leva embora.
Já senti essa "coceira de ir" algumas vezes, não atendi a nenhuma delas e Salvador continua sendo minha casa. Nessas vezes, ao me imaginar em outro lugar, montava cenas como essa do texto para me convencer de que, seja lá onde fosse, eu criaria raízes.
ei, volta.