Eu estou atualmente namorando, e o namorado é surfista. Esses dias ele veio comentar que dentro d’água as mulheres são tão competitivas umas com as outras quanto os homens, porque ele presenciou eu e uma outra moça surfando juntas e teve a impressão de que começamos a disputar ondas e comparar manobras assim que nos vimos.
Não vou dizer que isso não aconteça. Se a surfista for bodyboarder, como eu, é normal dar uma olhadinha no nível técnico. Até mesmo pra se inspirar, caso ela consiga mandar umas manobras que eu ainda não consigo. Se ela for iniciante ou se o mar estiver difícil (e aí vale para surfistas de prancha também), eu gosto de estar atenta caso ela tenha dificuldades e precise de ajuda, nem que seja com palavras (já aconteceu: num dia de ondas grandes, uma moça que tinha entrado com o namorado estava morrendo de medo e não conseguia sair do mar. Veio falar comigo e eu a ajudei a pegar a onda para sair, enquanto o cara queria que ela ficasse ali vendo ele surfar e nada fez para ajudar ou para aplacar o medo).
No dia que meu namorado teve a impressão de que eu estava disputando com a outra moça, eu tinha acabado de pensar: "como as mulheres são mais legais que os homens dentro d’água". Eu vi a moça, ela me viu, a gente acenou uma pra outra, de longe. Lá pelas tantas nos aproximamos, nos apresentamos, e começamos a conversar. A partir daí, a gente começou a vibrar cada vez que uma pegava uma onda boa.
Homens há muitos. Demais. Geralmente estão pegando uma onda atrás da outra, competindo (aí sim) uns com os outros, não dando chance para ninguém. Que eu tenho raiva de homens não é nenhum segredo. Quando estou surfando eu tenho raiva de todo e qualquer macho que passa na minha frente, pois muito provavelmente ele está agindo como… macho. É um cenário bem propício para isso. A masculinidade precisa se amostrar. Eles não conseguem ser macho em silêncio, na quietude do próprio ser — impressionante. Disputam (às vezes ferozmente) uns com os outros e não é raro ouvir gritos. Existe uma hierarquia no line up (como é chamado o lugar depois da arrebentação onde os surfistas esperam as ondas chegarem). Os locais têm preferência para entrar nas ondas, junto com os mais experientes. Os iniciantes e os de fora, chamados de haoles, estão no último degrau da cadeia alimentar. As mulheres estão por ali também. Os atributos vão se somando — ou subtraindo: mulher, bodyboarder, e “coroa”: já viu né — e para ganhar respeito a pessoa precisa se provar. Mulheres que são locais têm mais crédito, mas mesmo elas sofrem. Já escutei uma surfista nascida e criada no lugar reclamar que, mesmo bem posicionada, não estava conseguido surfar, devido à "fominhagem" dos caras (nível de surf da guria: compete no circuito mundial). Nessa hierarquia, não é tão raro os locais gritarem, xingarem e até expulsarem haoles. Com as mulheres eles até que são mais fofos. É difícil chegar nos xingamentos e violência (mas de vez em quando acontece). Mais comum é ignorar a prioridade, embarreirar (entrar na frente na onda, o que atrapalha), fazer de bóia (remar de um jeito que "rouba" a prioridade). Enfim, pode ser bem chato surfar no meio de um bando de macho.
(é claro que tô generalizando, gente; nem todo homem, bla bla, eu até tenho amigos homens surfistas que são bem queridos — o que eu tô descrevendo é um comportamento de manada, quando se junta o bando na performance da masculinidade)
As mulheres são minhas parceiras. Invariavelmente em número bem menor, nós nos solidarizamos. Quando eu vejo uma mulher dentro d’água, eu fico contente. Geralmente a gente se cumprimenta. É uma espécie de reconhecimento. Oi, eu sou mulher, você também; eu sou surfista, você também — QUE BOM QUE VOCÊ ESTÁ AQUI! O clima costuma ser de cordialidade. Alegria compartilhada.
Quando eu vejo uma mulher pegando uma onda, acertando uma manobra, entrando num tubo, eu fico feliz. Eu vibro com ela. Porque é muito bom surfar. Que bom, amiga, que tu tá tendo essa chance de sentir isso. Que mais mulheres venham pro line up!
(não pensem que vou soltar a bomba de que tenho um namorado e ele é surfista e vou sair de fininho; de fato, é complicado. ser hetera já é bem difícil pra mim; conseguir me abrir pro amor é uma treta gigante; o cara praticar o mesmo esporte que eu traz várias questões, desde querer me "proteger" até querer me "ensinar" — e sim, já tivemos muitas discussões por causa disso. mas também tem o lado legal, que é viajar e surfar junto — e ainda por cima ele é fotógrafo de surf então atualmente eu tenho ALTAS fotos! (como essa que abre o texto). sempre que eu pensava em ter um namorado, era um surfista que eu queria namorar. então vamo aproveitar o presentinho da Universa e aprender com ele. talvez um dos aprendizados necessários seja ter menos raiva de homem, então aparentemente vim parar no lugar certo ;)
Ah, que texto incrível! Surfar é meu próximo objetivo - e já ouvi muita gente me relatando o que você me relata. Engraçado é que nunca senti esse clima no skate. Inclusive, me sinto muito bem recebida e acolhida como mulher skatista. Há um respeito profundo por mulheres que estão na cena do skate, e sobretudo pelas que estão aprendendo o esporte. Confesso que fiquei bem surpresa quando descobri que no surf tinha tanta competição. Mas sorte que nós, mulheres, nos damos as mãos e vamos juntas.
Boas ondas pra você <3
Que os espaços para os aprendizados se abram cada vez mais. E vou pensar aqui se tem alguma profissão que eu curta mais, nunca havia pensado. :)