Ninguna mujer és más bonita que la libertad
O dia em que eu peguei um avião pra ficar com um boy em Havana e tomei um pé na bunda
Havana, abril de 2019
30.03
Si tengo lo que leer, lo que cocinar, y com que escribir, estoy bien.
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Já tenho o que pode ser chamado de uma história de não-amor em Havana. Tenho também, acredito, algo com esse lugar. Me sinto em casa, tenho muita desenvoltura e me sinto bem confortável e segura caminhando nas ruas, seja que horas for. Ao mesmo tempo, me sinto muito sozinha aqui, desde a primeira vez. Tenho receio da dissolução. O ego tem receio da dissolução. Por dissolução entendo: a solidão e despegamento, tão profundos, de tudo que faz eu ser eu e minha vida ser a minha vida — o trabalho, os gatos, o Heitor, os amigos, a casa, as circunstâncias cotidianas — que me perco no nada, no vazio, e não consigo voltar. A mim. Tenho medo do pânico que acho que sentirei se houver a dissolução. Estou aqui conversando com esse medo o tempo todo.
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Ontem fui dormir cedo porque estava cansada e tinha visita na sala. Acordei de madrugada assustada e desorientada, sem saber onde estava ou o que estava fazendo aqui. Com frio e me sentindo muito só. Fui até o quarto do moço e bati na porta e pedi pra dormir com ele. Tengo frío, eu disse. Ven pa cá, ele falou, bem do jeito cubano. Me abraçou bem apertado. Dormimos assim o resto da noite.
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O frio foi usado hoje de novo pra justificar eu deitar com ele no sofá. Até quando vou ter que usar a desculpa do frio pra me aproximar?
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31.03
Hoje é apenas o terceiro dia e já estou pensando em ir embora antes da data marcada (mano, mais 9 dias aqui, assim, como vou aguentar?), pagar algumas centenas de reais e mudar o voo. Depois pensei que vai ser produtivo para o meu trabalho ficar uma semana sem internet, sem interrupções. Isto é, se eu conseguir paz na cabeça pra trabalhar. Se o receio da dissolução deixar. Já me assusta bastante a possibilidade de não dormir, de acordar com medo de madrugada e não conseguir voltar a dormir. Se em casa isso já acontece… E daí que todos os fantasmas se aproveitem desse momento, como fazem às vezes lá em casa. Só que aqui eu estou longe de tudo que me assegura que o mundo é um lugar seguro. Talvez seja isso o que vim viver aqui: sei que preciso estar com o vazio, mas até agora apenas flertei com isso. Tem sempre algo pra me preencher ou acolher quando a coisa aperta. Dessa vez tô aqui presa numa azotea sem internet e com um homem que não me quer.
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Eu acho que desconcerto certas pessoas. Essa é a melhor versão para explicar por que não consigo me relacionar. Todas as outras versões são ruins, falam de falta, de inadequação. Essa é a única versão flattering. Tipo “os homens não aguentam as mulheres fortes”. Eu desconcerto certas pessoas é o meu os homens não aguentam as mulheres fortes. Fico com essa versão.
(uma vez um moço disse que eu sou “incompreensível pra afegão médio”. não sei se entendi direito e nem sei por que só pros afegãos — mas me identifiquei)
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Em abril não há abacates em Cuba, para o meu lamento. E nem aquelas mangas gordas, amarelo-forte, doces. Mas há tomates e mamões. E suco de guayaba.
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Não consigo entender por que estou tão assustada. Por que não estou, ao invés, curtindo a vida. Ontem acabei achando, sem querer, um baile de salsa! E dancei! Havana é bonita e tem sol e tá calor. É seguro andar nas ruas a qualquer hora e os homens me adoram. Por que tô me sentindo tão acuada? Com medo de dissolução? Por que estou achando que não vou conseguir simplesmente trabalhar, cozinhar, viver a vida normal como faço em São Paulo, ou na Guarda? O homi não me quis, foda-se, bola pra frente, mas eu não posso ir embora ainda pq senão vou pagar centenas de reais pra mudar o voo e eu não tenho pra onde ir e tenho que ficar aqui nessa torre sem internet convivendo com o homi que não me quis e tentando não querê-lo também e tentando não ser intrusiva, sair do caminho dele o máximo que eu posso, e tentando não querer que ele me queira e tentando parar de achar que daqui a pouco ele vai me querer. “Give me some time”, ele falou. Quando eu quis conversar pra ver se eu entendia o que tava acontecendo.
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Hoje saí pra caminhar de novo e: dois dos homens que me abordaram eram professores de salsa, vi dois animais mortos, e fiz uma coisa que não gostei: recusei dinheiro pra um homem que me pediu (recusei não, eu dei um peso cubano, mas ele queria pesos CUC, e eu tinha, mas não quis dar) e deixei ele falando sozinho quando ele queria combinar um encontro pra eu dar roupas pra ele. Disse que tem 12 filhos e perdeu tudo no furacão. Ayuda un hombre viejo, ele falou. E eu saí andando.
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Eu chamo muita atenção andando na rua, acho que são as tatuagens. Me cansa. Principalmente porque tenho que ficar fending off os homi. Eu gosto de falar com as pessoas na rua, e se falam comigo eu na maioria das vezes respondo, paro pra conversar. Aqui, nem sempre. Ando ignorando. Principalmente quando me chamam de “lady! lady!”. Ou fazem barulhinho pra chamar: psst. Psst. Ah, se vou responder homi que me chama com pssst.
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Hoje, um certo progresso: quando eu cheguei da caminhada ele tava vendo filme na sala (ao invés de no quarto dele, como ontem). Mas em alemão. E continuou. E não fez nenhum sinal convidando à aproximação. Eu sentei no outro sofá ali perto. Quando terminou o filme a gente conversou sobre nosso trabalho, o de jornalista, sobre transcrever entrevistas, sobre o que eu tenho pra trabalhar nessa semana etc. Combinamos de amanhã ir juntos ao hotel que tem internet e é calmo pra trabalhar. Daí eu perguntei se ele queria ver um filme que eu entendesse. Começamos a procurar filmes nos computadores e vimos um que ele tinha (ele tem vários dos irmãos Cohen antigos): Raising Arizona. Que é praticamente um tratado sobre a imbecilidade masculina. Achei significativo.
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Tomo banho e me encho de óleo de coco. E fico grudenta, pegajosa — que é como eu acho que sou com as pessoas que gosto e é exatamente o que as repele.
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Agradeço mas não sei se vou aguentar ficar convivendo. Tô presa numa torre com um homi que não me quer. Mas de certa maneira eu acho que preciso ficar. Pra finalmente ver a coisa que tenho que ver e que tenho tão cuidadosamente evitado sentir. Parece que até que eu sinta isso eu vou continuar repetindo padrão. E sentir, como se sabe, é a coisa mais difícil pra mim.
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Então que se eu tivesse dinheiro sobrando eu adiantava a passagem e me ia embora logo. Ficar: é bom pra trabalhar em paz, sem a internet atrapalhando, mas quem disse que vou conseguir, com tanto barulho na minha cabeça? Ficar também é 1) acalentar a esperança de que ele me queira no decorrer dos dias e 2) manter a ilusão de normalidade, tá tudo bem, eu não esperava outra coisa além disso mesmo, vim aqui passar uns dias em Havana na casa desse amigo.
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01.04
No hotel Capri, trabalhando. O moço também está aqui trabalhando, eu vejo ele concentrado, sentado no fundo do salão. Na hora que ele vai embora, passa para me dar tchau. Me beija no rosto. Fico olhando ele sair do hotel:
Mas é gato, mano.
Como eu desejo esse homem.
Como me fodo nessa vida, caralho.
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Que eu quisesse ele já era uma boa indicação de que ele não ia me querer. Meu desejo e o desejo do outro, no mesmo lugar, ao mesmo tempo: tem sido uma impossibilidade. Aqui em Havana isso encontra símbolos bem evidentes. Cheio de homi na rua me querendo. Ontem voltei pra casa com dois telefones (não solicitados, claro). O UM que eu quero não me quer. Puta clichê horrível tão verdadeiro pra mim.
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Havana vai fazer aniversário de 500 anos e a cidade está toda em obras. Pra tudo ficar bonito pra festa.
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Eu vim com a pecinha de amar estragada nessa vida.
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Ele tá escrevendo la fora, eu tô escrevendo aqui dentro. Nos intervalos da escrita a gente lê livros. Ia ser tão bonito se a gente se quisesse. Se a gente se quisesse poderia ter intervalos de conversas super interessantes e estimulantes sobre os assuntos que estão sendo escritos (ele, uma novela; eu, uma matéria sobre agroecologia); sobre o estado do mundo, o comunismo de Estado de Cuba, a construção de projetos pós-capitalistas, a vida e tudo mais. E aí a gente se beijava e transava e depois tomava um café e cada um voltava a trabalhar e ia ser tão bonito. Mas não dá pra ter tão bonito assim, comigo não rola bonito. Tava pensando, em retrospectiva, quando é que tive uma relação funcional que funcionou, e a resposta é quase nenhuma das vezes anteriores indo até bem pra trás. Sempre, em todas, tinha alguma dificuldade ou treta. Ou não tinha sexo, ou eu sofri horrores, ou me senti abandonada. Eu só me fudi na minha vida amorosa, e quando não fui eu que me fudi é porque fui eu que fudeu o rolê. Não tem UMA vez que tenha sido bonito e funcional continuamente (essa é uma semi-mentira, já que com o Murilo foi bem bonito continuamente. Porém não dá pra dizer que foi continuamente funcional).
E depois do Murilo, traço. Bolas de feno rolando nas pradarias do meu desejo. Já quis um monte de gente que não me quis de volta.
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02.04
"It’s so easy to have sex”, ele disse, “eu meio que enjoei”. Pra me explicar por que nem se pegar a gente se pegou. O misunderstanding entre nós foi tamanho. Pra ele, eu era mais um hóspede. Pra mim, eu vim pra ficar com ele. Foda-se se a gente não tem e não ia ter nunca nada mais além de sexo. Mas não, não era só isso: da minha parte tinha curiosidade e interesse, além da memória de uma noite de bastante prazer e surpresa. A gente só se viu uma vez na vida, dois anos atrás, mas é assim que a gente conhece as pessoas, às vezes: fudendo, conversando, convivendo junto por uns dias (mas pra mim tava de bom tamanho só transar, viu? Ainda que eu concorde com ele: é tão fácil to have sex — bem, pra mim não é fácil, mas costuma ser insuficiente: só fuder me deixa com fome).
Ele me deu tantas razões, tantas desculpas. Mas tem alguma coisa que ele não disse. Algo aconteceu depois que eu cheguei. Não é possível que tenha sido apenas desentendimento, diferenças culturais e de expectativas. Não vou saber nunca. Eu acho isso porque não é possível que alguém possa ser tão leviano. Eu passei dois meses fazendo festa com meus amigos, ele disse. Agora eu tenho que me concentrar no meu trabalho, ele disse. Sim, mas tu sabia que eu estava vindo. Ah, mas eu achei que tu tinha outras coisas pra fazer aqui, não entendi que vinha só pra me ver, ele disse. Bem, mas eu te falei isso. E olha que absurdo: eu falando isso pra ele e me ouvindo falar isso e me dou conta: que absurdo. Vir pra Havana só pra ficar com um cara que eu só vi uma vez na vida. Não foi por falta de aviso da minha intuição. Eu tive várias pistas, e oportunidades, pra desistir. Mas não.
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Amanhã vou gastar algumas centenas de reais e mudar o vôo.
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E depois vou decidir o que fazer da minha vida, agora de uma perspectiva diferente. Ter vindo aqui e ter visto tão pouca graça em tudo aqui, um lugar do qual saí dois anos atrás toda emocionada, cheia de tesão e morrendo de vontade de voltar, jogou um véu cinza na minha vida. Não cheguei a sentir aquele buraco vazio da depressão, mas se isso não é depressão, não sei o que seria. Me cansei profundamente. De investir em qualquer coisa. Minhas matérias, as oficinas. Tudo que eu acho tão importante, o meu serviço. Relacionamentos. Eu quero voltar pra casa da minha vó (casa e vó que não existem mais).
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Ele tem uma tatuagem escrito ninguna mujer és más bonita que la libertad.
Te juro que é exatamente por um ser desses que eu me apaixono.
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Por que eu fiz isso comigo a essa altura da minha vida? Com essa idade? Nesse momento tão frágil? É pra testar resiliência? É pra conseguir ficar no vazio, finalmente?
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Eu vou embora mesmo? Lembra do prazer de dançar salsa em Havana? Não quer ficar e fazer isso de novo?
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Pra eu ver, uma vez mais, que não é o corpo e a forma do corpo que faz uma pessoa gostar de mim, ou não. Me querer, ou não. Nunca estive tão magra, tão forte, tão bronzeada, tão gostosa, todas essas coisas que eu considero que me deixam um filé pelo qual todos deveriam babar. Mas não. Estar mais magra mais forte mais gostosa não me traz amor nem companhia nem acolhimento nem afeto e nem, pasmem, sexo.
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Si volveré de la guerra no lo sé, ay no lo sé
Si volveré de la guerra no lo sé, ay no lo sé
Lo que sí, lo que sí quiero saber es si tú me vas a querer
Ay, lo que sí, lo que sí quiero saber es si tú me vas a querer
- Concha Buika
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Pensando bem, não é nada mal ter Havana como cenário pra uma roubada dessas. Até nas merdas eu sou privilegiada. Como disse a Lenina, podia ter sido em Canoas (que é o equivalente portoalegrense de Guarulhos).
:)
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03.04
Fui embora da casa do boy e — que alívio.
Donde no puedas amar no te demores, né?
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04.04
Me olho pelada no espelho dessa nova casa e penso “como é que ele não me quis?”.
Vai demorar pra passar, essa que eu me aprontei.
Então parece que minha newsletter é sobre escrita
Tem um livro que eu tô escrevendo há, te juro, uns 20 anos. Eu ainda era casada com o Mike quando comecei, então devia ser lá por 2002 ou 2003. O motivo desse livro não ter sido finalizado (são vários, mas) é que eu não sei como termina. Falta um conflito e uma resolução (por favor refreie o impulso de dizer "ah tá, falta tudo"). Volta e meia ao longo desses anos todos eu pegava o livro pra tentar continuar – tem vários arquivos perdidos em pastas antigas, o apelido do livro seguido do ano. Depois outro ano e outro ano. Em cada uma dessas eu avançava um pouquinho ou quase nada. O livro é um romance, é ficção. Eu quero muito, mas muito mesmo, escrever ficção. Só que eu sempre acho que a realidade é tão rica que minha imaginação não vai nunca chegar perto. Eu não sei inventar coisas. Mas bueno, eu inventei uma. Só que eu não sei como termina. Eu também não sei o que me faz voltar ao livro de vez em quando, qual é o impulso que me faz procurar o arquivo mais recente. Essa semana aconteceu (acho que foi inspirada no livro da Bia Bonduki, Até contentar o coração, e no jeito legal que ela conta histórias). Faz tanto tempo que não voltava a ele que nem lembrava qual era o ano do arquivo mais recente. Achei um, 2014 — não era. Eu tinha uma vaga memória de que na última vez eu tinha avançado, tinha inventado uma cena que era uma resolução, ou um caminho, algo assim. Continuei fuçando e achei 2021. E tá lá. Não apenas a cena. Mas o conflito, a resolução, o final do livro inteirinho. E, vou te dizer: não é ruim.
Eu tenho muito receio de escrever ficção. Pois não me acho boa o suficiente. Como eu disse ali na primeira edição dessa newsletter, apesar de já ter escrito provavelmente mais de mil posts de blogs e redes sociais, dezenas de reportagens, matérias e artigos, cadernos desde que eu era criança, um TCC, uma dissertação, vários zines, e dois livros (tudo não-ficção, ou auto-ficção, sei lá), não consigo me auto-intitular "escritora". Levei meu sobrinho para surfar e ele esqueceu a parafina. Eu falei “como pode um surfista esquecer a parafina??". Ao que ele me respondeu: “Não sou surfista, tia. Eu surfo, é diferente”. Pois é, eu sou pessoa que escreve. Mas “escritora” é uma roupa que acho que não me cabe. Tem isso, né? De se julgar. Eu penso "ah, mas meu livro nunca seria Companhia das Letras". Tá, mas e daí? Quem disse que literatura tem que ser sempre perfeita? Quem julga o que é literatura boa? (bem, os editores da Companhia das Letras, por exemplo).
Mas enfim, eu falei tudo isso pois procurando "o livro" (chamemos assim por enquanto) achei um arquivo chamado Havana, abril de 2019. É esse texto que vocês (guerreiros que chegaram até aqui) acabaram de ler.
pois é, depois dessa história eu tô ainda mais curiosa pra ler o que você tem escrito nesses anos. :*
Eu tô na minha primeira semana no trabalho novo, naquela de só abrir no navegador coisas "laborais", por ainda não tem a cara de fazer "coisas pessoais". Mas entrei no email e li esse texto todinho de tão "imerso" que fiquei.