Eu não tinha nem 40 anos ainda.
Mas eu me achava muito velha. Aos 33, dez anos depois de me formar em jornalismo, eu fiz outro vestibular e entrei no curso de agronomia. Naquela época começaram a aparecer meus primeiros cabelos brancos, e eu era hippie e não queria pintar. Daí que eu me sentia a “coroa” no meio daqueles jovens todos. E, ainda por cima, enquanto todo mundo fazia farra e se pegava, eu era casada (nunca foi grandes coisas, aquele casamento. Talvez eu possa classificar como a maior mentira que contei pra mim mesma. Tive inúmeras ficadas casuais que foram mais verdadeiras que qualquer dia dos dois anos que o casamento durou).
Lembro direitinho do momento em que percebi. Tava vendo um capítulo de uma novela e tinha um ator novinho muito gato. Acho que era Bruno Gagliasso ou Cauã Raymond. Ele tava sem camisa. Eu olhei para a TV e senti uma pontada na boca do estômago. “Ai. Tô fudida" — pensei. “Vou ser daquelas velhas que correm atrás de garotos".
Eu não estava nem na meia idade e já entedia que 1) eu sinto desejo por corpos específicos; 2) os corpos específicos pelos quais eu sinto desejo costumam ser masculinos e jovens; 3) eu vou envelhecer e então, como diz a Miranda July, I will never get what I want anymore, man-wise.
Em seu novo livro, All fours, ela tem 45 anos, está entrando no climatério, se dando conta de que chegou na meia idade — e entendendo as implicações disso (a comparação da vida com um objeto jogado para cima produz uma imagem precisa: o período do nascimento-infancia-puberdade-adolescência-adultez equivale ao objeto subindo; o ponto mais alto que ele atinge é a meia idade; a descida, não preciso nem dizer, é só ladeira abaixo). Eu já li 83% do livro (tô lendo no Kindle) e não quero que termine, então eu voltei pro 23% pra ler de novo. Pra digerir com calma. Como uma vaca ruminando. Porque merece. O livro merece e eu mereço, porque é tanta identificação, mas tanta. Não me recordo de ter lido um livro que narra com essa precisão meus próprios processos.
Miranda July tem um jeito de dizer as coisas que eu acho muito interessantes do ponto de vista literário. Vejam estas frases:
I approached it cautiously, having learned from past flower assumptions. — ela diz ao ver um buquê em cima da mesa da sua casa. From past flower assumptions, gente.
I'd incarnated. Now my brain was spread out over my whole body, not just in my head. Of course I had always been in here, but so gingerly, like a person never wanting to unpack even though they're obviously going to be staying a while. — sobre os resultados de levantar peso.
I had not participated in the infuriating pleasure of wanting a real and specific body on Earth.[…] When you said you might never recover, you really meant it. This kind of desire made a wound you just had to carry with you for the rest of your life. But this was still better than never knowing. Or I hoped it was.
Te entendo, amiga. Foi ali, olhando aquele mocinho sem camisa na novela, eu não tinha nem 40 anos, que eu senti talvez pela primeira vez na vida o que era desejar um corpo específico na Terra sendo uma mulher adulta, como era a sensação do desejo não preenchido (o vácuo, a falta, o vazio, a fome), e que eu como objeto de desejo tinha meus dias contados.
Now suddenly my lust was uncouth, inappropriate. […] Justa a few years earlier, at forty or forty-two, I would have been a contender, but now it was too late. And he was just the first one. From now on this would be the norm.
Meu casamento de mentira acabou sem grandes consequências e eu fui viver a vida adoidado, experimentar umas coisinhas. Durou um ano e depois eu entrei em outro relacionamento, esse de verdade, que durou doze, até a minha meia idade — quando então eu saí quebrando tudo. Talvez tenha jogado fora o bebê junto com a água do banho?
A lot of women destroy their lives in their forties and then one day wake up with no periods and no partner and only themselves to blame. — disse uma amiga dela quando ela resolveu open-source o debate.
Pra talvez não precisar ser a velha que corre atrás de garotos, eu precisava fazer um monte de coisas rápido. Passei vários anos me relacionando quase sempre com homens mais novos e fazendo procedimentos estéticos pra retardar os sinais mais evidentes da idade. Digamos que eu adquiri passabilidade. Hoje quem olha pra mim não diz que tenho 55 anos. Isso era importante nos apps, quando eu na cara dura mentia minha idade. Afinal, garotos. Nos apps, a vida de uma mulher acaba quando ela chega nos 50. Os homens com quem eu saí, mentindo a idade, não teriam sequer me visto, pois selecionavam uma idade máxima inferior a 50. Eu mentia na casa dos 47, nem conseguia mentir muito. Já que ia mentir podia ter mandado uns 42, né? Hoje acho que não teria essa cara de pau. Bem, hoje não tenho sequer paciência pra apps.
Outra coisa que eu fiz também foi virar esportista. O que mudou meu corpo de uma maneira que nunca antes tinha acontecido. A Miranda do livro, magricela que nunca fez exercício, entrou na academia pra puxar peso pra levantar a bunda em preparação para um vídeo que ela ia gravar, uma dança de acasalamento (aqui você pode ver um vídeo de Miranda July dançando num quarto de hotel — a bunda dela é incrível). Inclusive, ela dança pois
Words always took things down a notch with their supposed know-ing, their elaborate trying. Words kept you in two separate brains. Dance was the way to close the gap. What gap? How could there be a gap between any two living things when every living thing was so obviously one thing.
(how could there be?)
Eu virei atleta porque gosto de ser forte e pegar onda, mas não posso negar que teve também um componente de vaidade estética. Eu queria ser gostosa. Afinal, garotos.
Lá pelos 80% do livro ela faz uma pesquisa com amigas mais velhas. Pergunta quais coisas as mulheres mais gostaram depois da menopausa. Isso não é algo sobre o qual se fala muito. Na real ninguém fala sobre menopausa, a não ser pra lamentar. Eu gostava de menstruar. Quando os períodos começaram a ficar irregulares e a médica disse que isso era o climatério, eu chorei no consultório. A gente pensa na menopausa com tristeza, como se fosse o fim da vida sexualmente ativa de uma mulher. A lista de sintomas que podem ocorrer é um show de horrores: falta de libido, secura vaginal, ganho de peso, depressão, pele seca, perda de massa muscular, dor nas articulações, insônia, calorões, alterações de humor, confusão mental… credo. Eu agora estou dez anos na frente da personagem. Acabei de entrar na menopausa oficial (um ano depois da última menstruação). Assim como as mulheres que responderam a pesquisa dela, eu comecei a ver que há uma boa vida pós-menopausa, se a pessoa se cuidar — pois muitos dos sintomas terríveis listados aí em cima podem ser evitados com mudanças no estilo de vida, alimentação, prática de atividade física, meditação. E uma reposição hormonal cuidadosa, se a mulher quiser. A libido, há quem comemore a sua partida e não faça nada pra reverter esse quadro, pois assim não precisa mais lidar com homens.
Das coisas que eu posso listar como boas pós-menopausa: acabou o medo de engravidar, tenho bem menos crises de enxaqueca, não tenho mais TPM, tô bem menos preocupada com coisas imbecis (eu achava que era por causa da análise+ meditação, mas pode ser simplesmente a sabedoria da idade), abriu todo um espaço mental e emocional pra refletir e fazer coisas que eu sempre quis e tava ocupada/estressada/noiada demais pra conseguir fazer. Eu virei surfista no climatério. Acho que tá bom, né.
Outra coisa que pode entrar na lista do parágrafo acima é que com a menopausa veio a percepção de que eu fiquei forte internamente. Corajosa e capaz. De viver para mim e comigo mesma. Foi construção de uma vida inteira, a partir de escolhas nem sempre fáceis (água do banho, bebê, etc), que agora se consolida. Talvez eu me torne uma velha que não vai querer correr atrás de garotos — ou vai, e daí? (pois, mais um efeito da menopausa: vou fazer o que eu quiser e ninguém tem nada com isso — também conhecido como “tô cagando”). Eu e o desejo entramos em acordos. Te garanto que ninguém saiu perdendo (talvez alguns garotos :)
O livro não terminou ainda. Mas algo me diz que Miranda July chegou num lugar igualmente bom (sendo ela Miranda July, provavelmente melhor). Espero vocês lá.
ei, você que chegou agora: leia também
e já que hoje falamos inglês, aqui tem umas news que eu leio e gosto nessa língua:
Puta merda, que texto DELICIOSO de se ler! Caiu no meu Substack Reads, abri despretensiosa e não consegui desgrudar os olhos da tela até terminá-lo. Sinto falta de ler (e ouvir) mais mulheres trocando figurinhas sobre a menopausa. Às vezes até dá a impressão que a partir de certa idade é proibido abordar uma série de assuntos. Parabéns pela honestidade e por retratá-la com humor tão refinado <3
sempre te admirei um monte, e agora ainda mais <3